A Toráh Dual do Judaísmo

A Toráh Dual do Judaísmo


Durante os últimos vinte anos tive a oportunidade de falar a muitos grupos cristãos sobre a tradição religiosa judaica. Quando os perguntei se pudessem identificar os sagrados textos do Judaísmo, a maioria podia identificar a Toráh. Ulterior sondagem de que entenderam por essa palavra revelava a tendência geral de pensar de Toráh como o rolo guardado no repositório duma sinagoga.

 Os melhor informados eram capazes de identificar esse rolo como contendo o Pentateuco ou os primeiros cinco livros da Bíblia. Nada disso está errado, mas representa um entendimento muito limitado de como o Judaísmo, pelo menos desde tempos pós-bíblicos, tem entendido o conceito de Toráh.

Uma Toráh Oral Escrita

Desde a antigüidade até o dia de hoje, o Judaísmo olhava não só o Pentateuco nem somente o inteiro corpo da Bíblia Hebraica. Seu cânon abrange uma larga fila de sagrados Textos que se referem ao Pentateuco como a Toráh Escrita (Toráh Shebiktab) e fala também duma Toráh que não está escrita, mas sim formulada e preservada na memória. Esta última Toráh está conhecida como a „Toráh Oral" (Toráh Shebe`al¯pé). Posto de maneira simples: o Judaísmo tradicional mantém que a Toráh foi revelada a Moisés no monte Sinai em dois modos, um escrito e outro oral transmitido pelos profetas e sábios (daí a referência a Toráh dual no título deste ensaio).






Na sua investigação de muitas fontes rabínicas que se referem à origem e desenvolvimento da Toráh Oral, Schimmel propõe

„que a lei escrita nunca podia ter estado sozinha, e que ao mesmo tempo quando a lei escrita foi dada no Sinai, esta deve ter sido acompanhada por uma tradição oral".

De fato, é fácil argumentar que tal visão inere no próprio caráter da própria Toráh Escrita. Assim, há muitos termos e instruções na Toráh que não são definidos ou permanecem escuros. Proibindo trabalho no Sábado, a Toráh não define qual trabalho é proibido; mas o termo está elaborado na Toráh Oral. Lidos sem tradição acompanhante, há também trechos na Bíblia que parecem contraditórios: em Êxodo (12,15), o número dos dias nos quais deve ser comido pão não-fermentado é sete, enquanto no Deuteronômio (16,8) é seis. Fica deixado para a Toráh Oral tomar conta da divergência. A Toráh Oral elabora também casos onde leis não são explicitamente estabelecidas.

Onde lacunas estão em evidência, ela as enche. Por exemplo, a lei de divorcio é mencionada somente de passagem no que se refere à instrução de que um homem não deve casar outra vez com sua mulher divorciada depois de ela tiver casada outra vez e ter divorciada outra vez (Deuteronômio 24,1-4). O condenado ao espancamento não deve receber mais batidas que as infligidas (Deuteronômio 25,1-3), mas não especifica em lugar algum quais transgressões envolvem punição de espancamento. Parece claro que o próprio caráter da Toráh Escrita é tal que seria impossível regular a vida sem tradição oral que a acompanhasse desde o início. Seria igualmente verdade dizer que a Toráh Oral não chegou à plena expressão senão depois do período que seguiu a destruição do Segundo Templo pelos romanos no ano 70 E.C. (Era Comum), um acontecimento que precipitou uma crise de maiores proporções na vida judaica.

O Fundo Histórico
O Templo de Jerusalém, junto com seu sistema de sacrifícios, constituíra o foco do Judaísmo para séculos. Comentando a centralidade do culto de sacrifícios na vida judaica, Neusner observa (1995:320-321) que „o ciclo do santo tempo estava marcado por sacrifício ... O que fez Israel Israel (sic) era o centro, o altar; a vida de Israel fluía do altar".

Com a destruição de Jerusalém e do Templo, porém, o foco existente da santa vida judaica desapareceu, o prospeto de religião sem sacrifício teria sido duro de imaginar. Perderam seu Templo já uma vez antes (em 586 A.E.C.), mas então tinham de esperar somente setenta anos para ele ser reconstruído. Desta vez porém, considerando a força de Roma e sua determinação de não permitir que o Templo estivesse de pé outra vez, os judeus podiam facilmente ter decidido que o Judaísmo teria chegado ao fim com a destruição do Templo. Que o não fizeram está largamente devido ao gênio do Rábi Yohanân ben Zákai e aos sábios que se reuniram em Yábneh, cidade ao leste de Jerusalém, que chegou a ser o novo centro da vida religiosa judaica.

Yohanân ben Zákai estava preocupado, não só com a sobrevivência do Judaísmo dentro da Palestina, mas também na Diáspora. Se os judeus, dispersados como estavam por todo o Império Romano, estariam tempo demais isolados da mola principal dos centros religiosos na Palestina, poderiam bem ter abandonado sua herança judaica. A questão que Yohanân ben Zákai e seus sábios encaravam em Jabneh, era a de como inventar uma estrutura dentro da qual a identidade religiosa dos judeus podia ser preservada sem o Templo e culto de sacrifícios. O dilema que confrontava ben Zákai está graficamente formulado por Max Dimont (1971-141) como segue:

„Que medidas executáveis podia inventar, projetar ou ordenar para preservar a identidade dos judeus sob essas circunstâncias? E mesmo se fosse bem sucedido, como as podia fazer cumprir sem polícia, sem exército, sem organização política? Quanto podia confiar no dínamo carismático implantado nos judeus pelas Escrituras canonizadas? Atenderiam à mensagem que lhes foi inculcada pelos profetas? O nacionalismo pregado por Ezra iria desintegrar-se ou se manter firme no exílio? Qual agente catalisador seria necessário para fundir essas efêmeras ideologias numa sociedade judaica estável num mundo gentílico caótico?"

Defronte de tais questões os rábis chegaram a considerar a revelação duma Toráh Oral ao longo daquela da Toráh Escrita. De fato, a importância dessa idéia para o desenvolvimento do Judaísmo pós-70 E.C. não pode ser superestimado. Neusner (1995:322), então, anota que, com a destruição do Templo como o lugar de santidade dentro da sociedade judaica,

"o Judaísmo da Toráh dual continua um ideal gêmeo: santificação da vida cotidiana (meu relevo) no aqui e agora, o que plenamente realizado conduziria a salvação de todo o Israel no tempo a vir. Mas o quê ficou a ser santificado, já que o Templo fora santificado pelo seu culto, e agora que o Templo se fora? Um lugar de santificação durava além de 70: o santo povo mesmo."
Assim, enquanto nos tempos do Templo a veneração era concentrada no culto de sacrifícios, agora a própria vida era para chegar a ser um ato de venerar Deus através da aplicação da Toráh Oral e seus ensinamentos à vida cotidiana do judeu.

Esses desenvolvimentos não ocorreram num vácuo teológico ou histórico, tendo, de fato, suas raízes nas reformas introduzidas na vida judaica por Ezra, durante o início do período do Segundo Templo. Era ele que começou a tarefa de organizar a comunidade judaica em Judéia ao redor das exigências da Toráh e pôs os fundamentos para o desenvolvimento do Judaísmo como uma religião de escritura. Ezra está sendo freqüentemente chamado de o pai do Judaísmo porque os seus esforços para popularizar o ensino e interpretação da Toráh iniciaram uma tendência na vida judaica que produziu uma nova classe de líderes religiosos, conhecidos como soferím (escribas). Recebendo sua tarefa de Ezra, dedicaram-se à correta interpretação da Toráh para garantir que ela pudesse propriamente ser aplicada à vida diária do povo e às variáveis circunstâncias desta. Os soferím, em conseqüência disso, chegaram a ser considerados como tendo colocado dentro do Judaísmo os fundamentos para a Toráh Oral. Como os soferím, os Fariseus consideravam-se como os tradicionais seguidores de Ezra, sua crença na existência da Toráh Oral e aderência nela são claramente atestadas nas escritas de Josefo. Todavia, foi a destruição do Segundo Templo que proveu o ímpeto para a Toráh Oral ocupar o papel definitivo no desenvolvimento da vida judaica pós-70 E.C.

A literatura da Toráh Oral

Embora falemos duma Toráh Oral, esta tradição encontra expressão numa vasta formação de escritos rabínicos. Além disso, esse corpo literário pode ser dividido em duas grandes categorias.

A primeira contém aquilo que conhecemos como tradição halahica ou legal do Judaísmo. O texto básico e ponto de partida desta tradição é a Mishnáh, uma obra composta ao redor do ano 200 E.C. no país de Israel. Na Mishnáh, diz Neusner (1995:328)

"ouvimos uma única mensagem forte. É a mensagem dum Judaísmo que responde a uma única concisa questão referente à duradoura santificação de Israel, do povo, do País, do modo de viver. O quê, na outonada da destruição do santo lugar e santo culto, remanesceu da santidade do ... Santo País, e, sobre tudo, do santo povo e do seu santo modo de vida? A resposta: Santidade persiste, indestrutível, em Israel, no povo, no seu modo de vida, no seu País, no seu sacerdócio, na sua comida, no seu modo de sustentar vida, na sua maneira de procriar e assim manter a nação. Essa santidade vai durar. E a Mishnáh expôs a estrutura da santificação. Detalhou o que significa viver uma vida santa."

Ao ser registrada, a Mishnáh chegou a ser objeto de estudo ulterior, de comentário e de amplificação; um processo que deu origem a dois Talmuds. O Talmud de Jerusalém (Talmud Yerushalmi) era produto do país Israel cerca 400 E.C. Cerca de cem anos mais tarde, o Talmud Babilônico (Talmud Babli) nasceu. Descrevendo seu impacto na vida judaica, Neusner observa (1995:328) que o último Talmud,

"junto com seus comentários, códices de lei dele derivando e instituições de administração autônoma apoiando-se nele, tem definido a vida da maioria dos judeus e o sistema judaico que prevalecia como normativo. Sua bem sucedida definição dos essenciais do Judaísmo ...depende da sua convincente força da sua explicação do que é ser judeu, o quê quer dizer ser Israel, e como o santo povo deve elaborar sua vida no aqui e agora para conseguir salvação no fim do tempo."

A tradição halahica não terminou com o Talmud, comentários ou códigos de lei aos quais deu surgimento. Da necessidade de tratar novos assuntos e situações emergiu mais um corpo de lei judaica que também faz parte da Toráh Oral – a literatura dos Responsa. Como o nome diz, ela consiste de réplicas a questões específicas dirigidas a autoridades rabínicas, e que chegou a ser a maior fonte de precedente halahico. Dentro da literatura dos Responsa encontram-se também referências a assuntos de teologia, movimentos históricos e controversas religiosas. Os Responsa começaram depois da compilação do Talmud Babilônico, quando os sábios receberam pedidos escritos para explicações de passagens talmudicas escuras e para decisões sobre assuntos de significância prática. Rábis ortodoxos trabalham hoje numa tradição muito semelhante, tratam questões sobre uma larga faixa de assuntos contemporâneos, inclusive maternidade de aluguel, eutanásia no caso de alguém estar numa máquina de manter vivo, engenharia genética, transplantes e cirurgia transexual. Os Responsa chegaram a ser o caminho definitivo a conseguir decisões de Rábis, bem como o meio pelo que a tradição halahica continua encontrando expressão dentro da vida judaica contemporânea.

A Toráh Oral consiste também duma expansiva coleção literatura não-halahica chamada de agadáh. Essa tradição agádica está composta de escritos rabínicos não-legais, que incluem comentários bíblicos, parábolas, anedotas, legendas, folclore, ensinamentos éticos, aforismos e especulação teológica. O maior repositório da tradição agádica é a literatura do Midrash, compilada largamente na Palestina durante vários séculos. Este material deriva de homilias e sermões proferidos por sábios em sinagogas e academias. O termo midrash (literalmente: busca) refere ao extrair de versos bíblicos sentidos além do literal. Tipicamente, então, midrash interpreta um texto bíblico ou grupo de textos de acordo com sua relevância ou significado contemporâneos. De passagem seja notado que a literatura midrash, que trata de versos legais da Bíblia pertence àquela parte da Toráh Oral que compreende a tradição halahica do Judaísmo.

A autoridade da Toráh Oral

Dada a centralidade da Toráh Oral no Judaísmo, resta, finalmente, inquirir a fonte de sua autoridade dentro da estrutura da vida e tradição judaicas. Poder-se-ia argumentar que fé na origem sinaítica da Toráh Oral seria suficiente para estabelecer seu papel autoritativo. Essa fé, porém, não está inteiramente sem problema. Quando várias fontes que tratam da natureza da revelação sinaítica são postas lado a lado, está-se sendo confrontado com pontos de vista que parecem estar em contradição direta um com o outro.

O Talmud de Jerusalém (tratado Peah 2:4), por exemplo, alega que aquilo que foi revelado a Moisés no Sinai não era somente o Pentateuco mas também a Mishnáh, as discussões talmúdicas, a tradição agádica e "mesmo o que um estudante maduro pudesse expor perante seu professor no futuro" (minha ênfase). Isso sugere que a autoridade da tradição oral derive da fé de que uma linha direta e imediata possa ser traçada do corpo inteiro da Toráh Oral (incluindo todo conhecimento futuro) para a revelação original no Sinai. Isso, porém, leva Schimmel a perguntar (1971:27): "os Sábios não fizeram contribuição alguma à Lei Oral? E era tudo que disseram um mero eco da tradição que receberam no Sinai?" O preciso intento da declaração talmúdica não está inteiramente claro, nem é evidente por si mesmo.

Além disso, a declaração radical no Talmud de Jerusalém parece contradizer uma afamada história no Talmud Babilônico (tratado Baba Mezia 59b). Aqui lemos duma disputa rabínica referente a um ponto especial da lei judaica. Para provar que estaria certo, um dos protagonistas, Rábi Eliezer, pediu uma intervenção divina, e conta-se que uma alfarrobeira desarraigou-se e um rio fluiu para trás. Quando, porém, isso não moveu seu oponente, Rábi Joshua, Rábi Eliezer pediu ao Céu que testificasse que sua visão era a correta, nesse momento uma voz do Céu gritou que estaria ao lado de Rábi Eliezer. Ao que Rábi Joshua proclamou "não está no céu!" O Talmud explica que isso significa que a Toráh já tinha sido transferida no Sinai, e que a partir desse momento decisões halahicas estariam baseadas em opiniões majoritárias dos sábios. Nessa história, então, há uma insistência no fator humano na interpretação e desenvolvimento da Toráh Oral.

A julgar pela aparência, pareceria que a história contradiz à anteriormente citada declaração do Talmud de Jerusalém. Outra história, porém, contada no Talmud Babilônico (tratado Menahot 29), representa algo de atitude harmonizante que reconcilia essas duas aproximações. Neste caso lemos de Moisés sendo transportado ao futuro onde se encontra sentado na academia do grande Rábi Akiva. Incapaz de seguir a discussão, ficou triste. Em certo momento os discípulos de Akiva perguntaram a este: Rábi, de onde derivas este ensino?" Na réplica, respondeu: "Isso é um regulamento passado para baixo por Moisés do Sinai." Ouvindo isso, Moisés sentiu-se aliviado. Essa história paradoxal mostra como os rábis estavam cônscios da natureza do processo halahico, sabiam que leis atribuídas a Moisés estariam de fato irreconhecíveis para ele. Isso, porém, não diminui a autenticidade das leis nem a justeza da sua atribuição. Em outras palavras: a Toráh Oral está sendo considerada um como contínuo processo consistente estendendo-se do Sinai até o presente.




Isso, então, permanece a posição definida do Judaísmo Ortodoxo até o dia de hoje, a Toráh Oral forma parte integral da revelação divina e é, por isso, considerada como normativamente obrigatória. Todavia, a autoridade da tradição oral, nomeadamente a tradição halahica, é o único maior assunto que divide os vários grupos denominacionais dentro do mundo religioso judeu hoje.

Literatura:
E. Berkovits, Not in Heaven: The nature and function of Halaka, Ktav, New York 1983.
M. Dimont, The indestructible Jews, Signet, New York 1973.
J. Neusner, Judaism in Arvind Sharma (ed.) Our Religions, Harper, San Francisco 1995.
H. Schimmel, The Oral Law, Feldheim, New York 197l.


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Paul Forgasz ... leciona sobre Civilização Judaica na Monash University e é Diretor Educacional da Florence Melton Adult Mini-School em Melbourne.
© Copyright 1991 Gesher

Tradução: Pedro von Werden SJ

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